segunda-feira, 13 de julho de 2015

O Preço da Fama




Ela simplesmente não podia acreditar no que seus olhos viam: o carteiro, que lhe
acenava do portão com um grande envelope nas mãos. Ela, logo ela, que nunca recebia
cartas... nem mesmo resposta às inúmeras que mandava ao “correio sentimental” da revista
“Ruge Carmim”.
Nesses anos todos, havia recebido apenas uma resposta: a de Moacir - único homem
que chegou a tocar seu corpo, livrando-a definitivamente da condição de donzela. Moacir
fê-la viver um sonho. Foi feliz ao seu lado num breve momento, até seu castelo encantado
desfazer-se como poeira ao vento, quando descobriu que ele na verdade era Januário, casado,
pai de seis filhas e notório escroque, que lhe roubara não só a confiança, mas seus parcos
reais, economizados por longos anos e ganhos com dificuldades nas muitas lavagens de
roupa, com a água que ela buscava no açude mais próximo, há cerca de três léguas de viagem
pelos pedregosos caminhos de Canhotinho, cidade vizinha a Garanhuns, que tem como filho
mais ilustre ele, o próprio Presidente da República, o menino Lula, que tanto correu descalço
por essas paragens.
Novo grito do carteiro. Gilmália, envolta em seu robe de jérsei de um vermelho
esmaecido, comprado pelo reembolso, no catálogo da Francolares, desceu as escadas com a
altivez de uma rainha. O carteiro que a esperasse, afinal, não tinha tanto trabalho assim.
Assinou a ficha de recebimento e arrebatou-lhe o envelope das mãos com indisfarçável
desdém. Ele, moço magro, de olhar apático e cansado, com cheiro de suor azedo de quem há
dias não trocava a roupa, chupou os dentes, deu de ombros e partiu indolente, chutando
pedregulhos, atiçando os cachorros vadios e esquálidos, fazendo isso com o mesmo
menosprezo de que fora vítima.
Gilmália observou o envelope com atenção: grande, cinza, papel de primeiríssima
qualidade, com um grande timbre do Palácio do Planalto, aquela grande estrela de cinco
pontas verde e amarela, cercada pelos ramos de louro, com a inscrição de “República
Federativa do Brasil”. Leu o nome do destinatário e quase desmaiou. Gilmália do Amor
Divino Penacho da Silva. Era engano. Só podia ser. Como um documento vindo de Brasília
chegaria até aqueles recônditos nordestinos? Releu o nome do destinatário e dessa vez, não
teve dúvidas. Era ela. Não é possível que houvesse duas Gilmálias no mundo. Seu nome, fruto
de uma mistura nada harmoniosa do nome do pai, Gilvásio e da mãe Risomália... por certo
não aconteceria outra coincidência tão esdrúxula sobre a face da terra. O destino não seria tão
cruel.
Com mãos trêmulas, num misto de ansiedade e suspense, rompeu o lacre oficial. De dentro, retirou um papel retangular, com letras douradas. Por conta da miopia galopante que insistia em ignorar, comprimiu os olhos até quase fechá-los. Por fim, conseguiu divisar a escrita. Tratava-se de um convite para uma solenidade que agraciaria com uma comenda, pessoas ilustres das cidadelas vizinhas a que presenteou o país com um presidente vindo do povo.
Gilmália vacilou entre a desconfiança e a soberba. Por que se lembrariam dela? Ah, claro, o sobrenome “Silva” pensou em voz alta. Julgaram-na parente dele. Como não pensara antes?
Deslumbrada, agarrando o envelope junto ao peito, como se ali tivesse um grande tesouro passível de roubo, subiu as escadas aos pulos, esquecendo-se que os anos passaram e já não era mais aquela menina, ignorando o joelho que estalava a cada novo rompante.
Maldita artrose, pensou.
Doze de agosto, quinta-feira. A data estava próxima. Gilmália não tinha tempo a
perder. Precisava pensar nos detalhes: Roupa, calçado, acessórios, penteado, um bom
perfume... Mas como conseguir tudo isso em tão curto espaço de tempo? De súbito, lembrou-se
de comadre Coló, a velha costureira de mão cheia, que transformava as noivas de Canhotinho em verdadeiras princesas. Ela por certo lhe ajudaria. Compraria o tecido fiado na feira de Caruaru, comadre Coló talharia o corte num belo tailleur, cujo modelo seria retirado das antigas fotos daquela ministra baixinha de cabelos arredondados, da época do presidente bonitão... pena não lembrar mais o seus nomes.... Ela nunca fora mesmo de guardar nomes nesse complicado mundo da política... Mas esse detalhe não faria diferença. Ela estaria linda no dia da festa. E não seria nada assim, chinfrim, mas algo que a tornaria famosa, conhecida. Esse dia seria um divisor de águas. Sua vida se dividiria em antes e depois da comenda.
E assim, Gilmália embarca na fubica do seu Zé Normando, proprietário do único transporte coletivo daquele lugar. Solavancos e chacoalhadas esperavam-na estrada afora.
Ao entrar no empório de Dona Esmeralda, Gilmália arregalou os olhos míopes, voltando a comprimi-los novamente, tentando encontrar os apetrechos necessários. Olhou, revirou prateleiras, subiu e desceu cortes de fazenda e por fim, seus olhos divisaram uma peça de um azul royal com grandes margaridas brancas. Encantou-se com o tecido, um gorgorão grosso, mas que certamente se destacaria e ficaria lindo nas fotos. Vestida nessas cores, jamais passaria despercebida no evento. Precisava agora de sapatos. Algo não muito alto, a fim de evitar possíveis tombos, caso sua artrose cismasse em endurecer seu avantajado joelho, no clima ameno de Brasília. Aproveitou, escolheu laçarote para o cabelo, pulseiras e berloques, além de uma forte colônia masculina. Precisava estar cheirosa. Ah, um vidro de esmalte vermelho e um batom melancia. Avon era sempre um luxo!
Findo os preparativos, experimentou a roupa nova e quedou-se boquiaberta frente ao espelho: estava perfeita. Um pitéu! Valera à pena o endividamento.
Nessa noite, simplesmente não conseguiu dormir. Nem podia, senão, desmancharia o penteado que levou horas pra ficar pronto. Desse modo, acomodou-se numa cadeira e assim ficou até ouvir o canto do primeiro galo madrugador. Levantou-se, sentindo os ossos estalarem, mas sua excitação falou mais alto. Mirou-se novamente no espelho, revisando cada item. Nada poderia dar errado nesse seu vôo rasante rumo ao sucesso.
Saiu de casa apressada e cumpriu a maratona de solavancos e chacoalhadas na velha fubica até chegar à rodoviária. Tomou um café aguado, engolindo colheradas de paçoca de carne. A viagem era longa e o dinheiro contado. Não sabia que horas voltaria a por algo na boca. Enfim, embarcou no ônibus que a levaria a Brasília e de lá ao estrelato. Esse era o primeiro dia de sua nova vida.
Já no Palácio que tão bem conhecia pela televisão, sentiu calafrios quando passou pelos cadetes perfilados. “Cada homão de tirar o fôlego” disse para si mesma. Concentrou-se numa oração, rogando aos céus para que seus sapatos novos não escorregassem ao subir a rampa. Comprimiu as mãos, conferiu se tudo estava como ela planejara, fez o sinal da cruz e subiu.
Assim foi, devagarzinho, olhando com curiosidade cada detalhe, imaginando o que as fofoqueiras de Canhotinho diriam quando vissem suas fotos naquelas revistas chiques.
Entregou o convite à recepcionista que lhe abriu um sorriso de comercial de pasta de dentes e, assim, foi conduzida ao salão principal.
Seus olhos míopes arregalaram-se e estreitaram-se para não perder um só detalhe: móveis antigos e lustrosos, candelabros como os do filme “Casablanca”, tapetes em tons vermelhos que davam um toque solene, quase sacro àquela sala enorme, onde fotógrafos com seus flashes passavam apressados, acotovelando-se, sem notar-lhe a presença, apenas focados no anfitrião, ele, o próprio presidente, que sorridente, cumprimentava os homens engravatados a sua volta, dando-lhes tapinhas de cordialidade nas costas. Naquele instante, sentiu-se quase invisível.
Subitamente, todas as atenções focaram-se nela, flashes estouraram em sua direção, encandeando-a por um momento. Vaidosa, sentiu-se lisonjeada, estufou o peito e ensaiou uma pose. Sempre soube que, como o conterrâneo famoso, ela também aquinhoaria sua parcela nesse mundo de celebridades. Jamais duvidara do sucesso impactante que sua presença causaria. De repente, percebeu que pipocavam risinhos abafados que se sucederam à gargalhadas estridentes. Olhou em volta, sem entender o porquê. Até que um grande espelho na parede do salão principal lhe revelou toda a verdade: Sua roupa, escolhida a dedo e pensada nos mínimos detalhes, fundia-se agora com a paisagem. O gorgorão azul royal com margaridas brancas utilizado em seu belo tailleur era do mesmo tecido com que haviam sido confeccionadas as cortinas daquele salão imponente.
Seu mundo ruiu. Ela que sempre sonhou com o estrelato, tinha agora a chance de ser reconhecida até internacionalmente, como a mais bizarra das criaturas. Seria um prato cheio para as fofoqueiras plantonistas de Canhotinho e do mundo.
Desesperada, com o rosto afogueado e cega de vergonha, esqueceu-se da artrose que lhe consumia e correu em disparada, pouco se importando com as pessoas em que esbarrava, com o cabelo desfeito e o batom borrado. Tudo o que queria era fugir daquele lugar. Enterrar-se no anonimato do sertão de onde nunca deveria ter saído. Um raio nunca cai duas vezes num mesmo lugar. Brasília era pequena demais para dois nordestinos fazerem sucesso - deveria ter imaginado.
Por onde passava, atraía olhares. As pessoas corriam para ver o que se sucedia. Gritavam, riam, assobiavam, uns queriam tocar nela, outros tiravam fotos. E quanto mais assediada, mais Gilmália corria, fugindo de tudo, ansiando pelo esquecimento que até então lhe fizera sofrer. E assim, atordoada, lançou-se contra os carros sem se importar com o som das buzinas e com os freios que rangiam.
Um baque surdo. Silêncio de morte. O tailleur azul de grandes margaridas ganhou coloração avermelhada.
Seus olhos se fecharam enquanto estourava um último flash.
Na manhã seguinte o jornal estampou a manchete: “Estilista excêntrica lança moda e comete suicídio”.
E o high society foi invadido por tailleurs azuis com margaridas brancas, enquanto Gilmália permanece anônima, num túmulo sem lápide.

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